A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), pela primeira vez, reconheceu um Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil. A escolha recaiu sobre os apanhadoras de sempre-vivas que integram o sistema tradicional agrícola dos apanhadores dessas flores na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, que mantém viva a tradição dos seus ancestrais. A cerimônia oficial aconteceu em 11 de março de 2020.
De acordo com o representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala, esses sistemas de patrimônio agrícola são caracterizados pela combinação de quatro elementos: biodiversidade, ecossistemas resilientes, conhecimento tradicional e uma valiosa herança cultural. “Que esse reconhecimento também sirva para dignificar o trabalho destas comunidades e melhorar as condições de vida destas famílias”, afirmou, ao mesmo tempo em que reforçou a necessidade de esses apanhadores continuarem trabalhando pela sustentabilidade desse modelo, possibilitando a transmissão, de geração em geração, de suas biodiversidade, cultura e identidade.
Na região, seis comunidades tiveram seus sistemas agrícolas reconhecidos pela FAO: Lavras, Pé-de-Serra, Macacos e as comunidades quilombolas de Raiz, Mata dos Crioulos e Vargem do Inhaí – estão numa área de aproximadamente 100 mil hectares e chegam a manejar mais de 400 espécies de plantas já catalogadas, incluindo as alimentares e as medicinais, cujos conhecimentos e práticas únicas são desenvolvidas ao longo de gerações para manter os recursos genéticos e melhorar a agrobiodiversidade.
“Garantir o direito de uso da biodoversidade, das sementes crioulas, dos territórios tradicionais e das raças caipiras, como um rico patrimônio agrícola e biocultural”, é uma das prioridade, de acordo com uma das coordenadoras da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), Maria de Fátima Alves.
Candidatura – A candidatura do projeto brasileiro foi encabeçada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) que coordenou, por meio da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo, o encaminhamento do dossiê e do Plano de Conservação Dinâmica do Sistema, em conjunto com o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e a FAO, para que o Sistema de Agricultura Tradicional da Serra do Espinhaço concorresse ao título de Patrimônio Agrícola Mundial, o primeiro dessa categoria conquistado pelo Brasil.
Sistema – Os integrantes dessas comunidades, hoje em torno de 1,5 mil pessoas, transmitem seus conhecimentos no manejo das plantas e das atividades agrícolas, pastoris e extrativistas, cumprindo um importante papel de guardiãs da natureza. Ao mesmo tempo, garantem a autonomia alimentar por meio da produção agrícola de alimentos, como plantio de hortaliças, mandioca, arroz, entre outras culturas, e a criação de animais, com o pastoreio de gado curraleiro.
É um conjunto de práticas de convivência harmônica com o ambiente, mediante a preservação das tradições típicas da identidade cultural dessas comunidades, características que possibilitaram propor a candidatura do sistema mineiro à FAO. Com o reconhecimento, a próxima etapa é o desenvolvimento das ações do plano de conservação, o que irá contribuir para dar sustentação à continuidade do trabalho de preservação, transmissão dos conhecimentos e acesso a novos mercados.
Biodiversidade – Em relação às sempre-vivas – termo popularizado em virtude das características das flores, que depois de colhidas e secas, conservam sua forma e coloração – há cerca de 90 espécies manejadas de flores, com diversos formatos e cores. No período de abril a outubro, apanhadores e suas famílias sobem a serra para a coleta, em áreas de campos rupestres do Cerrado, conhecido como Savana brasileira, que ocorrem a 1,4 mil metros de altitude. É nesses campos na Serra do Espinhaço que se encontram 80% das espécies de flores sempre-vivas no Brasil, de acordo com dados do dossiê enviado à FAO. Os apanhadores permanecem por lá durante semanas. Para eles, é um momento de encontro entre as comunidades, promovendo a socialização. Além das flores, são também coletados diversos tipos de folhas, frutos secos dentre outros produtos ornamentais, a depender da época do ano.
Comunidades guardiãs – Essas comunidades são consideradas guardiãs da biodiversidade, tanto de sementes agrícolas como de conhecimentos tradicionais associados às espécies silvestres conhecidas como sempre-vivas e, ainda, de outras plantas importantes na dieta e na medicina tradicional quilombola. Ainda hoje preservam modo de vida tradicional de seus descendentes indígenas, europeus e africanos, que viveram no Brasil colonial.
A peculiaridade da região é uma combinação de atividades agrícolas, de pastoreio e extrativismo que formam um sistema de manejo dinâmico da paisagem. Conhecimentos continuam sendo transmitidos entre gerações; as sementes são trocadas e o seu compartilhamento é conduzido pelas comunidades, contribuindo assim para conservar o recurso genético vegetal.
O manejo é baseado no conhecimento tradicional, estritamente relacionado aos ciclos naturais das espécies e à intensidade de coleta, a fim de garantir a renovação e manutenção de cada espécie. De acordo com Codecex, a venda das flores é a principal geração de renda para as famílias, sendo que algumas delas, dos municípios de Presidente Kubitschek e Diamantina, já comercializam para os Programas de Compras Públicas (Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE e o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA).
No entanto, 80% do total produzido é exportado e compreende as espécies ornamentais comercializadas (flores, botões, ramagens, frutos secos), sendo que 55% destas são as sempre-vivas ou margaridinhas. Os principais importadores são os Estados Unidos, Países Baixos, Espanha e Itália (absorvem quase 90% das exportações). No Brasil, por sua vez, o destino comercial das flores é, principalmente, São Paulo, seguido por Minas Gerais, Paraná, Distrito federal e Ceará, segundo a comissão.
Além das flores e de outras espécies ornamentais, há outras fonte de renda, como por exemplo o artesanato, a comercialização de leite e queijo, os produtos da agroindústria caseira (farinha de mandioca, de milho, rapadura), assim como frutas e hortaliças (pequenas quantidades). A maioria da produção é para consumo das famílias.
Atualmente, em 15 municípios há comunidades apanhadores de flores na Serra do Espinhaço Meridional. A Codecex atua diretamente em oito e há demanda de mais quatro municípios.